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A irresistível narcose dos sentidos de Bill Lee
 
A irresistível narcose dos sentidos de Bill Lee
 
Com a inigualável assinatura de David Cronenberg, “Naked Lunch” é um dos mais bizarros e desconcertantes filmes dos últimos anos. Adaptado ao cinema a partir do romance não menos perturbante de William S. Burroughs. "Naked Lunch" é uma história sem enredo definido, que David Cronenberg ousou adaptar, inventando novas formas para o cinema.

1953. Nova Iorque. "Naked Lunch" é um filme que nos conta a trajectória de Wiliam Lee, um intelectual viciado na droga que se tenta afastar do seu meio, para levar uma vida banal. Lee trabalha como exterminador de insectos, tentando negar a sua capacidade criadora. É esta acção de fuga que vai sustentar a trama de “The Naked Lunch” e o desenvolvimento da personagem de Lee. Joan Lee, a sua mulher, utiliza o pó insecticida para se drogar e convida o marido a participar no novo prazer que descobriu. Em desespero, Bill procura um suposto especialista, que se revela um verdadeiro charlatão, para se tratar. A sensação de desassossego aumenta, na perplexidade das alucinações que começam a tomar forma, depois de tomar a droga fornecida por este especialista, Dr. Benway. Lee é então detido pela polícia, e na esquadra é confrontado com um surpreendente insecto que fala por uma boca de formato anal. A criatura assume-se como sendo sua chefe e dá-lhe ordens precisas para assassinar a sua mulher, revelando-lhe que Joan é uma espia, uma agente encoberta pelas formas humanas ao serviço da Interzone. Nesse dia, Lee chega a casa e encontra a mulher na cama com um dos seus melhores amigos, enquanto outro lê para os dois amantes uma passagem do livro "Naked Lunch" de William S. Burroughs. Perante o cenário que encontra, Bill Lee acaba por se injectar com a substância que o Dr. Benway lhe havia entregue, e partilha do êxtase comum que se vivia em sua casa. Resolve divertir-se com a sua mulher e tenta acertar num copo que ela colocou em cima da cabeça. Através de um espelho, observamos o momento trágico em que a bala disparada atinge a cabeça de Joan, que morre instantaneamente. É então que a rota de devaneio começa.

Em "Naked Lunch" a mente de Lee acaba distorcida pelo uso do pó insecticida, levando o protagonista a embarcar numa rota delirante, sob a capa de agente secreto na quimérica Interzone. A dependência atira-o para uma psicótica relação de escravatura, que inclui encontros com figuras resultantes de estranhas metamorfoses, na qual a sua máquina de escrever lhe dá as coordenadas para as suas missões.

Será "Naked Lunch" de David Cronenberg um filme autobiográfico de Burroughs? Cronenberg não se limita a folhear "Naked Lunch", usando para a construção da narrativa fílmica algum material sobre a própria vida de William s. Burroughs, pois depois da morte acidental da mulher, Burroughs fugiu para Tânger, e escreveu o romance "Naked Lunch", onde representa todo o processo criativo de um escritor.

O alheamento da realidade, presente na narrativa de “The Naked Lunch”, transporta-nos para um mundo ficcional com uma estrutura semelhante ao mundo real, onde é difícil distinguir a realidade da alucinação. A criatividade de Lee desperta, em consequência da morte da sua mulher, e vai tentar reparar a tragédia pelo acto criativo de escrever. A história avança e Lee, toma contacto com uma estranha criatura que o introduz na Interzone e alicia Lee a entrar neste estranho mundo e para escapar às malhas da lei. Lee troca a sua pistola por uma máquina de escrever. Neste momento do filme, abandonamos a realidade para entramos no mundo ficcional que Lee vai criando à medida do seu desespero. Este universo não encontra paralelo, confluindo as noções de alucinação e realidade a ponto de sermos incapazes de as diferenciar. A veracidade do mundo que circunda a cidade de Nova Iorque deixou-se ultrapassar pela alucinação de Lee, num potente conjunto de imagens tomadas como percepção, muito embora não tenham objectos que lhes correspondam.

Na primeira parte do filme, Cronenberg apresenta-nos as personagens e cria a divisa que irá suportar o enredo. Nesta segunda parte, desenvolve uma intriga complexa, num universo absurdo e surrealista que só as personagens podem reconhecer como real. Cronenberg não deixa nunca as amarras da realidade, provando em vários momentos as alucinações do herói. Na Interzone, Lee integra uma organização que não conhece, sendo obrigado a alterar a sua personalidade e orientação sexual. A relação de Lee com a sua máquina de escrever está numa subordinação directa com o consumo de droga, da qual vai cada vez depender mais. Lee deambula por uma estranha cidade, misteriosa e decadente, em tudo semelhante à cidade de Tânger, onde se cruza com as mais variadas criaturas e personagens. Fechado no seu quarto de hotel, deixa que seja a máquina de escrever a orientar a sua escrita e a sua existência ébria.

“The Naked Lunch” é mais um dos filmes em que David Cronenberg explora as imagens até ao limite do possível, transformando-as nos nossos piores pesadelos. Consegue criar filmes perturbantes, muitas vezes encarados como fruto da insanidade do autor.

“Naked Lunch” enquadra-se numa trilogia específica que explora abertamente a questão da capacidade da mente para controlar o nosso comportamento e o nosso destino. A tríade é composta por “Videodrome” de 1982 e “Dead Ringers” de 1988. O primeiro é um dos mais complexos filmes de David Cronenberg, no qual o realizador consegue fazer confluir a fantasia na categoria do real, a ponto do espectador, tal como o protagonista da história, não ser capaz de estabelecer os limites para cada conceito, experimentando violentas alucinações de cariz sexual. Por sua vez, “Dead Ringers” é baseado numa história real, a de dois irmãos gémeos cuja consciência pugna por estar dividida em dois corpos. “The Naked Lunch”, de 1991, apresenta-se como uma obra despojada de palavras, onde as imagens se fazem valer por si. Os planos equilibrados, as movimentações suaves da câmara, a iluminação que projecta sinuosas sombras sobre os rostos das personagens, a decoração de cores pouco reais, a interpretação dos actores quase bressoniana, os elementos fantásticos que interagem com a realidade como se fossem organismos normais dentro dela, e a música de inspiração jazzística encarregam-se de transformar esta obra numa contribuição do realizador para um momento memorável da história do cinema.(Paula Cordeiro)
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2024-04-20
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