UZI magazine
 Disco da semana  Filme da semana  Agenda cultural  Roteiro
 »Early  »Wanda  »Quintas de Leitura  »Sacramento Bar
i
ndex
   
m
úsica
  notícias
  comentários
  uzi_chart
  fib 2004
   
c
inema
  notícias
  comentários
  ante-estreia
  cine cartaz
   
d
iscurso directo
   
a
genda cultural
   
o
olho de Dalí
   
v
iva las vegas
   
u
zine
  manifesto
  galeria
  links
  ficha técnica
   
 
 
 
index » cinema » comentários
 
“Crash” ou a atracção do abismo.
 
“Crash” ou a atracção do abismo.
 
“Crash” ou a atracção do abismo.
A violência erótica do automóvel, na inconsciência do perigo e a fusão do desejo com a máquina são os principais elementos de um filme enigmático e perturbador. Realizado em 1996, “Crash” de David Cronenberg recorre ao simbolismo que rodeia a máquina e filma o automóvel para produzir uma metáfora para o desejo de morte, numa crítica irónica dos males que (ainda) afectam a nossa sociedade.

David Cronenberg é um realizador enigmático, dotado de uma capacidade inconfundível de perturbar os sentidos do espectador. Capaz de realizar filmes chocantes, a interpretação cinematográfica sobre David Cronenberg foge ao esquema simples da revelação de obsessões pessoais, para ser entendida como uma crítica irónica dos males que afectam a nossa sociedade. Comparáveis a Méliès, os trabalhos de David Cronenberg antecipam as transformações da sociedade, recorrendo às maravilhas da técnica para criar metáforas que habilmente se transformam em realidade.

Extrapolando desejo de morte individual para a civilização em geral, no filme “Crash”, Cronenberg baseou-se no livro de J. G. Ballard, para explorar a conexão entre o sexo e a morte. Criou um mundo abstracto e conceptual para potenciar o inorgânico e erotizar a tecnologia, na figura maquinal do automóvel. Colocando o corpo ao serviço da concretização de desejos e fantasias, Cronenberg especulou sobre os nossos devaneios, projectando para o ecrã os delírios do espectador. Na sacralização do material que dá ao automóvel o papel de mito da sociedade actual, “Crash” apresenta-se ainda hoje, como uma história perturbante, reveladora da perversidade existente em qualquer um de nós que liga o veículo que nos transporta a uma extensão da nossa intimidade, sexualizando-a em todos os sentidos.

Em “Crash”, as cenas “de sexo” são o enredo que permite o desenvolvimento das personagens e a continuidade da história. A personalidade das figuras de “Crash” não corresponde aos padrões tradicionais de comportamento e de moral. Helen Remington é a melhor representação desta questão. Num encontro casual com Spader, o causador do acidente que vitimou o seu marido, Helen mostra-se hostil, revelando uma certa sexualidade reprimida e um desejo ambíguo de vingança. Inesperadamente, envolve-se com Spader, demonstrando uma sexualidade ávida, imprópria para o luto.

No filme, a mutação do corpo humano desencadeia a queda de tabus. As formas mais tradicionais de expressão da sexualidade são rejeitadas, para as personagens tentarem formas desiguais de viver e sentir. Ao longo do filme, todas as reacções se alteram, a noção de dor torna-se muito própria atitudes aparentemente inconcebíveis, ganham uma acepção banal. O poder de sedução, da anatomia do corpo em estreita ligação com a do carro, desperta interesses muito característicos no conformismo masculino – feminino. Essa relação é determinante para um crescimento deliberado da perversidade das personagens, que encontram na relação homossexual uma fuga ao modelo padrão, e nos corpos desfiguradamente cicatrizados, o potencial erótico do seu prazer sexual.

É pelo sexo que este filme se afasta dos parâmetros da normalidade e nos perturba. Que o perigo é excitante, já todos sabemos. A novidade é a capacidade de aliar a relação sexual a instâncias nas quais os limites do perigo são desafiados, retirando dessa relação a energia para novas relações que exploram o que de mais obscuro há na mente humana. Depois de cada acidente, o veículo ganha preponderância nas relações sexuais, transformando-se num elemento de erotização, até se tornar num verdadeiro fetiche sexual, longe do qual qualquer relação sexual é impossível.

As figuras centrais da trama perdem a sua força interior, descaracterizam-se perante um desejo que não preenchem por completo, fragmentando-se em torno das ligações que desenvolvem com Vaughan, um maníaco obcecado pela reprodução de acidentes de viação. É Vaughan que introduz no enredo a capacidade de descoberta, na procura de algo para colorir uma vida aborrecida. A sua morte, resultado de uma patética tentativa para destruir a monotonia, permite o embarque de algumas personagens na tomada de consciência de si, para se afastarem da espiral erótica em que se tinham envolvido.

Em toda a narrativa, ficção e realidade misturam-se de forma magnífica. A função tradicional do sexo muda, e o potencial erótico encontra-se nas marcas que o habitáculo do veículo deixou cicatrizadas no corpo. O acidente de automóvel enriquece todas as possibilidades do corpo humano e mesmo da personalidade, que pesquisa misteriosos universos, criando uma nova identidade.

Símbolo sexual por excelência, David Cronenberg filma o automóvel como um estímulo sexual, exibindo cada detalhe como se de um corpo feminino se tratasse, alterando por completo o seu papel nas nossas vidas. As figuras desta história estão mais preocupadas em explorar os limites – da condução, da tecnologia, do desejo, do sexo e da própria vida – do que em morrer. Trata-se de uma exposição deliberada ao perigo – não apenas físico - onde morrer é a concretização dos ensaios realizados em todos os acidentes anteriores. Não há uma fuga, antes uma proximidade. Não se tenta evitar ou fugir. Há antes um desafio, numa tentativa de finalmente demarcar os limites entre o humanamente impossível e a sobrevivência ao acidente.(Paula Cordeiro)
 «
 
 

 

   

© UZI magazine 2004
2024-10-30
alojamento: RealFastMedia.com