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A natureza assassina do mundo americano de Oliver Stone
 
A natureza assassina do mundo americano de Oliver Stone
 
O mundo moderno está repleto de ficções. Vivemos no seio de uma cultura de ilusão, da qual o cinema faz parte e para a qual contribui, mostrando a realidade, criando-a e ficcionando-a de acordo com a intenção de cada realizador. Falar de cinema é falar da realidade. Ao ver um filme, pensamos inevitavelmente na distância entre a realidade real e a realidade que nos é mostrada, mesmo quando essa realidade se aproxima, pela caricatura, da tal realidade que conhecemos como sendo a real. Será?

No cinema, tudo depende dos olhos que guiam a câmara: o cinema são imagens, inspiração, a montagem e o ritmo. Trata-se da criação de um espaço diferente do real, onde se desdobra um enredo com personagens por caracterizar. No filme, a realidade deve falar por si mesma, e o filme deve ser um espelho fiel dessa mesma realidade, não deixando grande margem para personalizações do real.

A América já foi objecto de incontáveis incursões cinematográficas e, num estilo muito característico, o road movie, tal como o filme noir ou o western, filma inevitavelmente um mundo americano, quer pelas manifestações culturais, quer pela paisagem que mostra: a estrada plana e infinita que corta ao meio o deserto vermelho e solitário.

Neste género de filmes, há sempre uma viagem, muitas vezes até duas: a viagem física através da longa estrada e a viagem psicológica de rumo à liberdade, essa liberdade que se encontra depois de ultrapassar e derrubar todas as barreiras. O sentimento que acompanha as personagens é um sentimento de descontentamento e exclusão. Geralmente são fora da lei, despojados de qualquer credibilidade social (e até moral). Roubam com facilidade, matam sem qualquer problema e seguem o seu caminho.

Há quem aponte um sub género ao road movie, “The Bonnie and Clyde Films”, para caracterizar os filmes cuja história está centrada num jovem casal de apaixonados que fogem num carro roubado, roubam, matam, fazem muito amor e acabam por ser apanhados. Histórias como as de “Gun Crazy”, “Bonnie and Clyde” ou “Natural Born Killers” são uma alegoria dos dilemas políticos e culturais de uma classe média que anseia por liberdade, muito embora seja incapaz de abandonar a aparente segurança do lar e da família. Ainda que muitas vezes, disfuncional.

Em “Natural Born Killers”, o argumento de Tarantino reflectiu todo este panorama situacional da família americana, tendo conduzido Oliver Stone a filmar uma das mais alucinadas e anárquicas produções de hollywood nos últimos 20 anos. Com uma velocidade impressionante, o filme narra-nos a história de um casal que se evade para poder viver o seu amor, apesar de deixar no seu caminho um rasto de sangue de difícil digestão. “Natural Born Killers” pode dividir-se em duas partes: numa primeira fase é contada a louca aventura assassina de Mickey e Mallory que, durante três semanas, vagueiam no seu carro pelas estradas do Oeste, matando 52 pessoas. A segunda, mostra-nos o circo que os media montam na sua captura e posteriormente, a prisão deste casal de assassinos natos. Mickey e Mallory matam pelo amor que sentem um pelo outro. E as ambições psicológicas do filme não vão muito mais longe. Eles matam porque sim.

Entre a primeira e a segunda parte, há diferenças notórias: na primeira nunca teríamos dúvidas que a tinha escrito Quentin Tarantino. Enquanto que a crítica sócio-política, e a mordaz ironia que rodeia a acção dos media dentro da prisão, revelam o subtil comentário sócio-político maldizendo os Estados Unidos da América, tão típico de Oliver Stone.

Dez anos passados sobre a data da estreia, a história mantém-se actual, crítica e satírica, numa realização que continua a ser digna do registo na história recente da sétima arte. Um olhar escabroso é lançado à sociedade que promove os assassinos como grandiosos ícones e, ao mesmo tempo, ao papel dos media na promoção e divulgação destes ídolos sangrentos. Mickey (Woody Harrelson) é um rapaz normal e sem qualquer problema, a não ser uma tendência para a chacina e que, ao ver Mallory (Juliette Lewis) se apaixona perdidamente por ela. Ela corresponde. Os pais de Mallory são contra. O pai abusa sexualmente dela e não lhe dá liberdade. Está descrito o essencial da típica família americana e são lançados os dados para a tempestade que vamos assistir, como se viajássemos no banco de trás do descapotável de Mickey e Mallory.
Oliver Stone criou um ambiente catártico, num filme que foge às fórmulas típicas da sétima arte. A voz seca e agressiva de Patti Smith acompanha algumas das cenas, a par com uma banda sonora caótica – tal e qual um vídeo da MTV, cheio de imagens subliminares e convulsivas.

Em “Natural Born Killers” a pluralidade de linguagens é tão vasta que o que retemos dele após um primeiro visionamento é muito pouco. Restam-nos imagens soltas e dissociáveis, porque afinal, o filme é também uma colagem de diferentes padrões que criam um ambiente de vídeo, com cor, preto e branco, roupas dos anos 70, flashbacks em sitcom, desenhos animados em super – 8, western, projecções de luz, néons berrantes, cenas de tiros e prisão…
Depois da intensa viagem de Mickey e mallory, as cenas na prisão de alta segurança são um momento halucinogénico na história do cinema. E como um filme não se vê e ouve, sente-se, este é o filme perfeito para os sentidos. O espectador é activo e co-sujeito. Por momentos quase desejamos viver dentro daquele filme, ver Mickey e Mallory de perto, assistir e participar naquela amálgama de sentidos, de cor e de sangue.

A entrevista que a vedeta televisiva Wayne Gale (Robert Downey Jr.), faz em directo para a telivisão, deixa que Mickey seduza a audiência e que se extremam as posições. Perde-se o controlo e a carnificina é generalizada. Mickey e Mallory, no final, conseguem fugir, numa sequência mediada para a televisão e avidamente devorada pelos telespectadores. “Natural Born Killers” é uma história marcada pela violência, pela abundância de situações-limite, a ausência de culpa ou de medo, o sangue e os tiroteios constantes regados com muito álcool e drogas pesadas, e que faz com que o real retratado se manifeste mais na imaginação das pessoas do que na realidade propriamente dita, pela distância que se consegue estabelecer, apesar de todas as imagens enfurecidas e mórbidas.

Até ao final do filme, todos desejamos que Mickey e Mallory se salvem. Assim acontece. No fundo, não há a justiça poética que consagraria o filme, e os dois amantes excêntricos e inatamente demoníacos, evadem-se uma vez mais. Mickey e Mallory não mudam nada, tornam-se ainda mais sangrentos, não fazem a viagem psicológica da aprendizagem e do amadurecimento tão habitual num road movie. Nem tão pouco saberiam o que isso é. Contudo, toda a parafernália do road movie parte com eles: o desejo de irem para outro sítio, de irem sem regresso, de irem como outsiders e elementos da mais podre sociedade americana, como que embalados pela música pesada de um rock sujo e duro. As imagens são perigosas, eles são verdadeiramente maus, há crueldade e horror, mas nós, como espectadores, acabámos por fazer parte de todo aquele cenário.(Paula Cordeiro)
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2024-04-19
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