Sinopse
João Vuvu, viúvo, sem família, à excepção de um filho que se encontra a cumprir pena de prisão por duplo homicídio e assalto a um banco à mão armada, vive sozinho em casa própria, ampla, soalheira e indiciadora de apreciável abastança, num bairro antigo de Lisboa, situado no sopé do Monte Olivete.
Pouco ou nada sociável, o senhor João Vuvu efectua diariamente o seu passeio no autocarro nº 100, repetindo infatigavelmente o mesmo trajecto: no sentido ascendente entre a praça das flores e o jardim do Príncipe Real e, no sentido descendente, até ao ponto de partida e subsequente regresso a casa. Apenas alguns acidentes de percurso podem episodicamente alterar este quotidiano que parece corresponder à vontade de isolamento do protagonista, à assunção de um exílio que o torna relapso a qualquer aproximação social.
A casa, onde livros e discos são as únicas companhias de João Vuvu, começa a requerer urgentemente os préstimos de uma mulher-a-dias que, com um mínimo de qualificações, teima em não aparecer.
A saída do filho da prisão e a decepção que o seu desejo de regeneração provoca no pai, irá desencadear uma série de sombrios acontecimentos em que a índole criminosa do protagonista se manifesta e o condena a um destino definitivamente fora da lei e a comunidade.
Salvaguardadas as devidas diferenças, duas referências cinematográficas marcantes: The fatal glass of beer de W.C. Fields e Monsieur Verdoux de Charles Chaplin.
Lido
Tendo João César Monteiro o hábito de, à semelhança de Chaplin, Keaton, Tati ou Moretti, ser o principal actor e personagem dos seus filmes, a projecção de VAI E VEM torna-se imediatamente uma experiência dos limites. Não só o filme é esplêndido, ousado, elegante, sensual, político, hilariante e intensamente irrecuperável, não só é um objecto de uma incrível violência suave, de uma lucidez serena, de uma ferocidade dolorosa (e nada disto é surpreendente quando o corpus monteiriano nos é familiar), mas também nos mete em presença de um verdadeiro fantasma: é o homem que acabamos de saber que morreu que se agita no ecrã, que desfia as suas visões tão pessoais da história, da religião ou da geopolítica, recita poemas, explica as virtudes do "brochim", calmamente sentado nas escadas do Parlamento português e nos sacode com risos inextinguíveis.
Desde "Recordações da Casa Amarela" ao "Bassin de JW", de "À Flor do Mar" a "Branca de Neve", d' "A Comédia de Deus" às "Bodas de Deus", que a primeira palavra e a palavras mestra que acorre ao nosso espírito é "liberdade". Em todos os seus filmes, João César Monteiro só fazia o que lhe apetecia, ignorando todas as escolas, desdenhando todas as influências, evitando todas as correntes: uma verdadeira repulsa das etiquetas. Na tradição dos grandes mestres do burlesco, Monteiro inventou um corpo, um duplo de ficção: João de Deus, aliás João Vuvu, aliás Max Monteiro, era o seu Charlot ou o seu Hulot. Grandioso e generoso até ao fim, João César Monteiro teve a delicadeza e a grande coragem física de se eclipsar em pontas dos pés deixando uma obra prima terminada.(Serge Kaganski, Les Inrockuptibles) « |